Uma das questões centrais para as empresas de telecomunicações nos dias de hoje é como elas conseguirão se posicionar no ambiente digital. A Telefônica, durante o Mobile World Congress de 2017, anunciou o Projeto Aura, que materializa o que a empresa chama de quarta camada da rede e é a sua grande aposta para enfrentar as empresas de Internet. Em essência, é um esforço da empresa de organizar e extrair dos dados gerados pelos seus usuários informações relevantes e que possam agregar valor aos serviços da empresa, e também de parceiros. Novos modelos de negócio, privacidade, proteção de dados pessoais, segurança da informação, um novo ambiente regulatório são algumas das questões que surgem no horizonte.
Nesta entrevista, o CEO da Telefônica no Brasil, Eduardo Navarro, que esteve à frente do projeto na Espanha quando ele começou a ser desenvolvido, explica como a empresa pretende explorar os dados dos usuários e os desafios que precisam ser contornados. Luiz Medici, diretor de business inteligence e big data da Telefônica, também participou da conversa.
TELETIME – O que o Projeto Aura significa em termos de posicionamento para a empresa? Em que contexto que surge esse projeto?
Eduardo Navarro – O contexto de reflexão é o que não podemos estar contra as empresas de Internet. Muito das necessidades de nossos clientes por conectividade vem porque tem um conteúdo bom do outro lado. Claro que existem divergências em relação a estas empresas, mas nunca podemos ser contra elas, pois temos que ser a favor do que querem nossos clientes. A primeira coisa a reconhecer é que nossos clientes adoram as empresas de Internet, que fazem parte da nossa vida. As empresas de Internet tem um modelo em que eles captam audiência por meio de produtos muito bons, oferecidos aos clientes de forma gratuita. Mapas, fotos, redes sociais etc. Depois essa audiência é explorada com publicidade e outros modelos, que têm se mostrado sustentáveis. As companhias que fazem isso hoje estão entre as maiores do mundo, e não há crítica a isso. De outro lado temos o nosso modelo, em que os clientes compram os nossos serviços, principalmente conectividade, pagam por isso, e por meio disso acessam as empresas de Internet. Por que esse entendimento é importante? Porque os clientes estão pagando pelo nosso serviço, e temos a obrigação de zelar pelo interesse desse cliente. Qualquer dado, qualquer informação gerada por meio da nossa rede, essa informação pertence ao nosso cliente. Ele não fez comigo um acordo tácito em troca de uma informação, como foi feito com as empresas de Internet. No meu caso ele pagou (pela conectividade).
Que tipo de informação é gerada pela rede?
Sabemos que as informações geradas (pelo usuário) são cada vez mais relevantes, porque permitem inferir comportamentos sociais, de consumo e até questões mais críticas, como a nossa saúde. É possível, por exemplo, só pela forma como você fala e respira, diagnosticar doenças, estabilidade emocional… estamos chegando em um momento em que a nossa vida digital será um reflexo da vida real, nos acompanhando e acompanhando a nossa rotina o tempo todo. A nossa vida digital terá mais informações sobre nós mesmos do que o nosso médico real, porque ninguém pode enganar a rede, ela não mente. (Nas aplicações) você pode criar um perfil falso, colocar um dado que não seja verdadeiro. Na rede não. Estamos convencidos de que no mundo digital as redes terão cada vez mais relevância, e por isso os consumidores precisam voltar a ter absoluto controle sobre seus dados digitais. No mundo digital, dado, informação é igual a dinheiro. O mesmo tipo de relação e controle que tem com o dinheiro o cidadão deveria ter capacidade de ter com os seus dados pessoais.
Hoje ele não tem esse controle sobre seus próprios dados?
Hoje não existe essa percepção de quanto é que vale o dado. As pessoas não tem nem consciência. E esse é o contexto. Hoje se fala que os jovens não se preocupam mais com a privacidade, mas tenho certeza que eles se preocupam com dinheiro. Na hora que ficar claro que a informação sobre ele vale dinheiro, a discussão deixa de ser querer ou não estar exposto e passa a ser quanto vale estar exposto. Dado é dinheiro e tem que ser tratado como dinheiro.
Mas as pessoas não sabem que tipo de informação o uso que elas fazem das redes ou das aplicações produz…
Exato, e que vai ser cada vez mais. Hoje o que está conectado é o celular, mas amanhã vai ser o carro, a roupa, o cachorro, a geladeira… A quantidade de informação que vai estar disponível será imensa. Durante o Mobile World Congress deste ano quase não vimos inovações em terminais, em handsets. Porque a inovação estará no cognitivo, no tratamento da informação.
É isso que é o Projeto Aura?
Isso nasceu em grande parte do nosso CEO (José María Álvarez-Pallete López) que percebeu que havia um valor nessa informação e que seria necessário devolver aos nossos clientes o controle, de três formas: primeiro, dando transparência sobre os dados existentes. Depois, dar opções do que fazer. E terceiro, dar o poder de decisão sobre como usar. Por exemplo, uma compra no cartão. Para nós é trivial saber se o cliente está onde o cartão foi usado e identificar fraudes. Ou usar as informações sobre como você dirige, que são coletadas pelo celular (como velocidade, acelerações, uso do telefone enquanto se desloca etc). Se o usuário pudesse compartilhar isso com a companhia de seguro, poderia ter um prêmio de acordo com o risco. Quem vai decidir passar isso à seguradora é o usuário. É um cadastro positivo se você quiser, e você tem o botão de ligar e desligar de acordo com o seu interesse.
O que vocês pretendem fazer com essas informações?
Pensamos no curto prazo em usar isso em produtos e serviços nossos. A gestão do WiFi, por exemplo, é um inferno, e essa gestão pode ser feita de maneira mais inteligente, melhorando a interface, mas o segredo não é só isso. A interface tem hoje várias formas: Siri (da Apple), Alexa (da Amazon), Google… Mas tem que ir além e integrar com a rede, vincular o serviço aos padrões de uso. Também não é simplesmente digitalizar os canais de atendimento, que a gente faz com app, como os bancos fazem. O segredo é colocar inteligência nisso.
Me parece que um passo anterior para as teles seja organizar a massa de dados que vocês têm para produzir algo interessante ao usuário…
A gente tem muita informação, mas em geral ela não é armazenada. Ou não era. Era uma informação sempre jogada fora. Nunca consideramos que o dado gerado na nossa rede tivesse valor. O José María (Pallete), chairman e CEO da Telefônica, resolveu fazer há alguns anos um doutorado em gestão de dados. A tese dele é sobre como as chamadas telefônicas podem ajudar a acompanhar a balança comercial do país. Ele chegou à conclusão que pelo comportamento das chamadas internacionais era possível prever a balança daquele mês. Para isso, ele buscou uma série histórica (das chamadas) e descobriu que isso não existia, não era algo armazenado, por uma série de razões. Ele entendeu que isso não era razoável. A partir daí ele decidiu que a Telefónica tinha que desenvolver capacidade nessa área de tratamento e análise de dados. Começamos a contratar gente e a trabalhar com os fornecedores e com as próprias empresas de Internet. E todo mundo topou porque todo mundo entende que não dá para ser contra dar ao cliente o poder sobre suas informações. Claro que muita gente foi cética pelo fato de estar vindo de uma empresa de telecomunicações, achando que tinha uma pegadinha qualquer.
O que vocês pensam em ganhar com isso?
Num primeiro momento, achamos que os clientes vão preferir estar conosco porque vamos oferecer serviços melhores, como o serviço de gestão de WiFi e outros. Depois, porque vamos criar um mercado e um modelo de negócios mais estável entre todos. Se eu fizer um acordo com uma companhia de seguro, por exemplo, em que a partir do uso dos dados do cliente, que ele decida compartilhar, seja gerado um desconto ou um benefício, a gente pode ter uma comissão disso. Mas de maneira sempre transparente.
Então o foco não é usar os dados dos clientes para publicidade, como as empresas de Internet fazem?
Não. O foco é um mercado de inteligência de dados para qualquer área da economia. Não somos uma empresa de publicidade e não vivemos disso. O mercado de publicidade é uma fração do nosso, e se meu foco fosse a publicidade eu estaria dizendo que quero diminuir em tamanho. A publicidade pode até existir para nós, mas será marginal. O que oferecemos hoje é uma opção de um anunciante patrocinar o tráfego de alguém que fica sem dados. Não estamos oferecendo dados sobre o cliente ou target de publicidade. Isso não é o foco, não é o nosso core. Nosso foco é big-data e o core do nosso negócio é conectividade. E como tratar a informação gerada por esta conectividade em benefício do próprio cliente.
Você disse que o foco da empresa é conectividade, mas dá para dizer que está mudando para ser uma empresa de dados?
Sim, tanto na transmissão dos dados quanto no tratamento daquilo que trafega na rede. Nesse sentido somos claramente uma empresa de dados.
E em que momento isso começa a se refletir nos produtos da empresa?
A primeira fase é dar mais facilidade na prestação de serviços, na facilidade de uso, gestão, atendimento. Temos consciência de que essa é uma área que nunca demos a devida atenção e agora começamos a dar. Mas para ter essa quarta camada as outras três precisam estar excelentes. Uma rede ótima, com serviços bons. Para nos candidatarmos a ter a quarta plataforma precisa resolver as outras três. É construir uma rede preparada, e ajustando os sistemas legados.
Até porque esses sistemas não estão nem preparados para gerar dados para a camada de inteligência.
Esses sistemas legados não te reconhecem como indivíduo, não sabem que você é usuário de tais serviços nem o que você faz.
Algo que as empresas de telecomunicações não têm é informação sobre o que está sendo feito nos dispositivos. O sistema operacional dos handsets não é de vocês e as aplicações que estão sendo utilizadas não são de vocês. Isso não cria uma desvantagem em relação às empresas de Internet?
Luiz Medici – Faz parte das questões de transparência e privacidade. Estamos em uma primeira fase em que o que temos de informação já é um salto gigante. Maneiras de coletar informações através do consentimento dos clientes também existem. Mas tudo tem que evoluir dentro dos parâmetros de segurança que o cliente nos der. Se a nossa plataforma der ao cliente o benefício de conseguir visualizar isso, será natural que ele compartilhe conosco as informações que ele quiser. Mas dados que trafegam em outras plataformas a gente nunca vai ter informações. O WhatsApp, por exemplo, é uma plataforma https, segura, a gente nunca vai olhar o que está acontecendo ali.
Navarro – E se o cliente falar que não quer compartilhar os dados, ele não compartilha.
Ou seja, a Telefônica só terá os dados gerados a partir da rede, como deslocamento, tempo de conexão etc?
Luiz Medici – São todos esses exemplos, mas dentro do que a rede coleta de informações.
O histórico de navegação, por exemplo, a operadora fica com o registro disso?
Navarro – Não coletamos isso. Sabemos se as pessoas estão assistindo vídeos, mas não olhamos que tipo de vídeo elas estão assistindo. O Marco Civil da Internet inclusive não nos permite saber esse tipo de informação.
Como gerenciar os riscos de segurança existentes no momento em que vocês lidam com esse volume de informação?
Estamos contratando especialistas nesse assunto. O nosso Chief Data Officer global é um dos maiores hacker do mundo (Chema Alonso). O hacker não se confunde com o delinquente digital, porque o hacker é um curioso que busca falhas no sistemas para poder corrigi-las. Essa questão vai ser tão importante que será um serviço. Não só vamos proteger os nossos dados como haverá hospitais, clínicas, empresas que terão informações sensíveis que precisarão desses serviços, além de nos contratar apenas para conectividade.
Não é muita responsabilidade para uma empresa só?
Por isso teremos que nos preparar para isso.
A legislação brasileira inclusive faz uma distinção entre provedores de conteúdos e provedores de conexão em relação ao que cada um pode armazenar de informações…
A nossa posição em relação a qualquer marco e qualquer lei de proteção de dados é sempre ser mais conservadores do que a legislação do país. Cumprir a lei é obrigação, mas além disso queremos ser mais rigorosos do que diz a lei. Porque entendemos que há aspectos que a lei não previu, e isso está nos nossos códigos de conduta.
Mas a legislação tratar de maneira distinta empresas de Internet e empresas de telecom não se torna um problema competitivo para vocês?
Eu acho que a legislação não deveria ter essa distinção. Todos deveriam estar igualmente expostos ao mesmo regime de proteção de dados, e que esse regime deveria ser bastante estrito. Quando falamos em level playing field é justamente para que as regras se apliquem igualmente a todos.
Uma das discussões globais hoje é sobre onde os dados devem ficar localizados. No Projeto Aura a Telefônica centraliza os dados em algum servidor fora do país?
Luiz Medici – Cada país tem o seu data center. A gente padronizou as arquiteturas sistêmicas para que os algoritmos possam ser compartilhados, ou seja, se alguém na Alemanha encontra uma solução interessante, isso possa ser aplicado no Brasil.
Navarro – É como se os formatos dos armários fossem os mesmos mas os conteúdos são diferentes país a país. O dado é proprietário de cada país. Ao longo desses anos todos de existência aprendemos a trabalhar como uma empresa regulada. Essa questão de proteção de dados e sigilo para nós não é um problema porque nosso DNA é assim. Se um dia alguém desconfiar que nós estamos escutando uma conversa ou lendo um SMS, eu como executivo da empresa, vou preso.
Mas veja uma situação que agora vocês podem ter que enfrentar: até aqui a Justiça determinava à tele a escuta telefônica de um determinado número. Agora chega uma ordem pedindo o histórico de deslocamento dessa pessoa, ou pior, o deslocamento em tempo real. Vocês se sentem obrigados a entregar isso?
É uma boa pergunta. Acho que isso não está ainda regulamentado. O que o WhatsApp fez foi alegar que os dados não existiam ou não estavam no Brasil. Para nós seria diferente. Esse é um tipo de debate relevante que precisa ser feito com a sociedade, e a sociedade terá que decidir entre ter, de um lado, absoluta liberdade, e do outro lado ter mecanismos que assegurem segurança. É a decisão entre não compartilhar nenhum dado versus lidar com a situação de ter um filho sequestrado e precisar da informação. Em 99,9% dos casos eu não gostaria que a minha informação estivesse disponível a ninguém. Mas em 0,1% dos casos eu posso querer que alguém tenha a capacidade técnica de acessar esses dados. Onde vamos ficar entre esses dois limites? Não somos nós que vamos dizer. Isso virá do debate público. Nós ainda estamos debatendo bens reversíveis de telefone fixo e orelhão, e esse outro tipo de debate, que é o debate sobre a vida digital, ainda está relegado ao segundo ou terceiro lugar. Mas o futuro virá por ai e esse debate deveria acontecer. Daqui a 10 anos, já é. Mas quem vai dizer como será não seremos nós. O que queremos é ser bons alunos da lei.
Quando o Aura chega ao Brasil?
A gente já tem algumas interfaces cognitivas com o nosso cliente, como a Vivi (canal de relacionamento via texto). Estamos trabalhando para integrar essas interfaces na quarta plataforma, de inteligência. Como grupo, selecionamos quatro países para receber a versão 1.0 do Aura em 12 a 18 meses. O Brasil é um desses quatro. Estamos no mesmo pé tecnológico dos outros países. Não será uma evolução. É uma revolução na forma como a gente vai trabalhar.